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Sherazade e os livros que nos tecem

Publicado em: 22/04/2021

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Sherazade e os livros que nos tecem

Gisele Pimentel Martins

Doutora em Teoria Literária - UFU

Professora de Literatura - Sistema Gabarito

 

 

Leyla Perrone-Moisés (1990)[1], professora de teoria literária da Universidade de São Paulo, explica que a literatura – a obra artística advinda da organização original das palavras – nasce da falta; o ser humano, em sua condição atávica de ser faltante, encontrou na literatura formas de buscar a completude ou de reconhecer sua própria incompletude existencial.  Antônio Cândido (2004)[2], outro professor da USP, completa afirmando que somos capazes de sentir prazer ao nos depararmos com poemas que explicitam, em sua forma, a ordem ou a desordem do mundo, mostrando que há sempre uma maneira de identificação com uma obra literária. 

 

Essa identificação não vem somente pela via da validação, do reconhecimento de que aquele mundo ficcional ou poético, codificado na linguagem literária, é um mundo em harmonia, mas poderá vir também da repulsa, da percepção de um mundo ainda pior e mais intensamente injusto do que o mundo nosso de cada dia. Reconhecer um mundo ficcional ainda pior do que o “real” é outra maneira de validar nossa sensação de que as coisas não são como deveriam ser, nos diz Leyla Perrone-Moisés. Validar as desgraças, representadas no mundo ficcional, é também validar nossa própria experiência do descontentamento provocado pelo estar no mundo.

 

A literatura é capaz de veicular um mundo harmonioso, onde tudo se ajeita no final; as reconciliações e punições acontecem com justiça e equidade; as rimas dos versos são perfeitas e suas metáforas nos pacificam por serem cuidadosas e se alinharem ao que sentimos, mas que não conseguimos expressar de formas racionais. Porém, a literatura também é capaz de veicular um mundo catastrófico, violento, injusto, desigual, em que a morte, a dor e a solidão ganham dimensões até maiores do que na vida “real”; os poemas podem apresentar versos que não se alinham, rimas estranhas e metáforas de mau gosto que nos arremessam, quase sem intermediação, ao pior de nós mesmos. 

 

Essa dinâmica do texto literário proporciona um verdadeiro exercício de expansão dos limites de nossa própria consciência e sua busca por contornos definidos. Dessa forma, a experiência da leitura nos mostra que sempre há uma infinidade de nuances entre o equilíbrio e o desequilíbrio, entre a harmonia e a desarmonia, instaurando e tornando quase concreto em nós, leitores, o insuportável da falta, da insatisfação e da certeza de nossa sempre adiada completude.

 

Mesmo quando estamos diante de uma obra teórica, que nos traz discussões sobre física, química, cálculo, sociologia, filosofia, geografia e tantas outras áreas do conhecimento, os bons livros sempre nos expandem, nos fornecem a oportunidade de acrescentar um grão de conhecimento à imensidão das coisas que desconhecemos. Nunca há prejuízo para o leitor. Nunca.

 

Não é por acaso que os governos autoritários, para se firmarem como legitimamente autoritários, queimam – literal e metaforicamente – os livros. Esses objetos são sempre perigosos, pois nunca é possível prever qual obra será o gatilho capaz de transformar um pacato cidadão em um controverso ser humano singular, diverso, excêntrico, porém, irremediavelmente, incompleto, frágil e pleno em sua finitude. 

 

Existir no mundo é, e sempre será, uma experiência individual. Nossas histórias e trajetórias, nossas percepções e sensações são únicas e, muitas vezes, dolorosamente singulares. Porém, não podemos afirmar que a existência é uma experiência solitária, já que compartilhada com aqueles que nos cercam e nos ajudam a ser quem somos. Nossos familiares, amigos, colegas, nossas músicas, nossos livros, nossas séries e filmes preferidos ou odiados, todos nos ajudam a formar, deformar ou reformar quem somos e nossas maneiras particulares de ver e de estar no mundo. 

 

Afinal, como separar quem somos daquilo que consumimos? Como separar quem somos dos livros ou músicas que lemos e ouvimos? Como mensurar a importância de um livro – ou de sua ausência completa – na formação subjetiva de um ser humano?

 

Sherazade, a heroína da conhecida obra As mil e uma noites, ilustra bem o papel dos livros em nossas trajetórias, pois sua existência, sempre limitada àquela última noite, torna-se uma das fabulosas histórias com que entretém, dia a dia, o sultão, num processo em que, ao tecer histórias, tece a si mesma, consolidando-se como uma personagem formada pelo atravessamento de diversos outros personagens, que experimentavam situações-limite semelhantes à que a própria personagem enfrentava.  Sherazade, que fala muito pouco de si e de suas origens no decorrer da obra, eternizou-se justamente nas histórias da lâmpada mágica do Aladim, nos 40 ladrões de Ali Babá, nos tapetes e gênios com que tecia sua personalidade tenaz, criativa e sempre no limite da existência.

 

Em cada uma de nossas histórias individuais, cabem, também, todos os livros, as músicas, os filmes, as séries, as obras de arte que consumimos ao longo de nossas vidas e que se tornam parte integrante de quem e de como somos. Afinal, pelo menos em parte, somos uma grande ficção de nós mesmos formados por vários outros universos ficcionais que nos atravessam cotidiana e inexoravelmente. 

 

 


[1] PERRONE-MOISÉS, Leyla.  “A criação literária”. Flores na escrivaninha. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

[2] CÂNDIDO, Antônio. “O direito à literatura”. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 2004.

Agradeço à professora Luciene Teixeira pela revisão deste texto.