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Desafios da educação contemporânea: da fragmentação à “reforma do pensamento”

Publicado em: 24/03/2021

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Desafios da educação contemporânea: da fragmentação à “reforma do pensamento”

Poliana Diniz
Gestora Pedagógica do Sistema Gabarito
Assessora Pedagógica de Projetos Culturais, Socioambientais e de Extensão 


 

 

Em 2016, passamos a oferecer semanalmente aulas de Cultura e Cidadania para todos os nossos alunos do 1º ano do Ensino fundamental à 2ª série do Ensino Médio. Poderíamos, desde já, recorrer aqui sobre essas aulas, seus desafios e conquistas, o perfil dos professores, o envolvimento dos alunos, a metodologia e os conteúdos abordados. Mas, não. Antes de recorrermos sobre essas aulas precisamos partir de uma importante reflexão: escola, qual é realmente o seu papel? 

 

É certo que sobre esse questionamento precisaríamos de inúmeras páginas, de folha a folha, de ponta a ponta, um debate denso que com certeza não se esgotaria. Então, vamos pelo menos lembrar que a escola é uma instituição legítima de educação, e nosso papel é educar. 

 

Nesse caso me vem em mente um questionamento corriqueiro, que normalmente surge quando se faz essa afirmação. Mas esse não é o papel dos pais? Não estamos diante de uma inversão de valores? Não, não estamos, pois no seio da família também se educa, conforme os princípios daquela família, os valores e os saberes que são passados de geração a geração.Na escola a educação é mais ampla e complexa, representa o primeiro espaço de maior convivência das crianças, é lá que se darão os primeiros conflitos, que se estabelecerão os relacionamentos e se formarão as identidades coletivas e os grupos de afinidades, e terão contato com as regras coletivas e as normas de convivência. Coexistir não é tarefa fácil, muitas vezes é frustrante e desafiadora e a escola tem um papel fundamental neste aspecto, promover e mediar os momentos férteis da coexistência. 

 

Contudo, não é só isso. A escola em sua essência é o espaço de produção de conhecimento, e não cabe aqui o conceito de escolarização, mas de educação. Pois produzir conhecimento requer ir além do acúmulo de conteúdos, ressignificando o papel do professor, que não é somente transmitir informações, fórmulas e conceitos, mas promover a aprendizagem. Aprender vai além de memorizar, não se restringe ao ato mecânico de repetição e reprodução. Aprender exige do sujeito o pensamento, a curiosidade, o questionamento, a dúvida, a investigação, o exercício de reflexão. Caso contrário teremos discursos vazios, que não se sustentam, alunos que decoram e esquecem a matéria, sujeitos passivos e improdutivos, incapazes de viver em uma sociedade complexa e dinâmica, incapazes de solucionar conflitos, de propor soluções, de resolver problemas contemporâneos, incapazes de coexistir.  Então falar das aulas de Cultura e Cidadania é pensarmos sobre os desafios da escola contemporânea. 

 

Aqui vale a pena recorrer rapidamente sobre o mundo VUCA, essa expressão tornou-se muito comum nas últimas décadas para descrever o quanto nossa realidade é instável, e por isso requer pessoas e profissionais preparados para esse cenário. VUCA é uma sigla que significa em português: volátil, incerto, complexo, ambíguo. Toda instituição que busca a excelência deve estar atenta à essa tendência. Inclusive a pandemia nos demostrou que o mundo VUCA não é apenas uma teoria, é real. De fato, ao longo de 2020 todos os setores da sociedade tiveram que ser reinventar rapidamente, propor soluções para problemas que até então não existiam, ser criativo e propositivo, ter saúde emocional, lidar com novos e múltiplos conflitos. Enfim, como não preparar nossos alunos para esse cenário tão incerto e desafiador?  

 

Certa vez, Viviane Mosé (poeta, filósofa, psicóloga, psicanalista), em um programa chamado Café Filosófico apresentou uma visão histórica, política e essencialmente problematizadora quanto aos desafios da escola. Segundo ela, quando o ensino se popularizou, era no contexto da industrialização e os reflexos disso na rotina e no espaço escolar perpetuam ainda nos dias de hoje. Nosso ensino é seriado, os espaços são fragmentados, os processos são classificatórios e prezam pela reprodução e padronização. Até o sinal sonoro, ao final de cada 50 minutos de aula, lembra uma fábrica. 

Como assumir de modo responsável e corajoso o papel complexo da educação diante de tantas limitações e contradições? Primeiramente é preciso mudar o pensamento, não apenas sobre a escola, mas sobre as relações, sobre o mundo. 

 

“Mudar a maneira de pensar é fundamental para a busca de uma visão mais global do mundo. A transdisciplinaridade representa uma ruptura com o modo linear de ler o mundo, uma forma de articulação dos saberes. O modo linear de pensar reduz a complexidade do real, produzindo receitas, fórmulas feitas e pré-concebidas.”

                                                                                                                  (GADOTTI, 2000, p. 39)

 

Cabe à escola criar espaços e momentos para que os alunos possam compreender a relação desses conteúdos com a vida, com a realidade. Ter uma disciplina semanal que traz como essência essas questões é muito corajoso por parte de uma escola, que além de compreender a educação na sua complexidade, também precisa dar conta das expectativas da sua comunidade, dos vestibulares extremamente conteudistas, dos processos seletivos classificatórios. 

 

Mas quando olhamos para nosso aluno, e o percebemos em sua totalidade, torna-se evidente que não conseguiremos resultados tão satisfatórios se acharmos que o processo de ensino-aprendizagem é apenas cognitivo e racional. Nossa geração de professores também veio de uma escola fragmentada, muitas vezes olhamos para nosso aluno de forma fragmentada e superficial, bem como para os conflitos e para o mundo. Olhar com profundidade requer de nós exercício, esforço, vigília constante. Como diria Viviané Mosé, “(...) o pensamento fragmentado afasta o ser humano da única coisa que existe, que é a vida.” 

 

“A esse problema universal confronta-se a educação do futuro, pois existe inadequação cada vez mais ampla, profunda e grave entre, de um lado, os saberes desunidos, divididos, compartimentados e, de outro, as realidades ou problemas cada vez mais multidisciplinares, transversais, multidimensionais, transnacionais, globais e planetários”. 

(MORIN, 2006, p. 36)

 

Por isso, precisamos de escolas que promovam espaços de debate e reflexão, escolas que levem os alunos para trabalhos de campo, que tragam pessoas de fora para dentro, que dialoguem com a realidade, que abram os portões para a participação dos pais, que não estejam isoladas e fragmentadas em relação à vida. A escola não pode continuar estática diante do mundo dinâmico, acelerado e instável que nos cerca. Não me refiro aqui somente a visitas em parques e museus, mas também na praça, na feira, no mercado, na indústria, na periferia. A escola pode e deve ser mais significativa para os alunos, mais envolvente. Quando os alunos precisam se engajar em algo proposto pela escola cria-se o sentido de pertencimento, o que gera segurança e estimula o senso de responsabilidade e autonomia. 

 

É certo que prezamos também pelo rigor conceitual, por avaliações bem elaboradas, por normas claras e bem definidas, horários de aulas e de estudos organizados. Não estamos negando nada disso. Desenvolver em nossos alunos o senso de responsabilidade e disciplina é igualmente importante para que estejam aptos para os desafios do mundo. Então acreditamos que não é preciso abraçar discursos que polarizam, mas sim que integram, que nos permitem perceber as possibilidades latentes no cotidiano escolar. 

 

 

Dessa forma, são diversas ações que as escolas assumem para deixar esse espaço, essencialmente fragmentado, mais significativo e dinâmico. No caso do Colégio Gabarito destaco a tradicional Gincana Solidária, em que os alunos passam dois meses fazendo arrecadações de alimentos não perecíveis, agasalhos, produtos de higiene, organizam-se em equipes, elegem líderes, criam vínculos, aproximam-se dos professores, atuam coletivamente. Para além disso, conhecem as instituições beneficiadas, as pessoas beneficiadas, as carências econômicas, sociais e afetivas de uma realidade que talvez, nem sabiam que existia. Mas também vivenciam conflitos entre os colegas, entre as equipes, ganham, perdem... Enfim, vão se desenvolvendo como seres humanos.  

 

 

Destaco ainda o Cine Gabarito, os Momentos Culturais, a Semana das Profissões, os Ciclos de Debates, a programação especial oferecida ano após ano, no Dia da Mulher. A escola, aos poucos, vai se transformando, deixa de ser dissociada da realidade, deixa de ser fragmentada e isolada. A escola, ao conversar com a vida, vai se tornando um espaço mais emocionante e real. Como diria Augusto Boal, “O ato de transformar é transformador”. Então a gente, educador, ser humano, se transforma junto. Por isso não seria possível oferecer somente as aulas semanais de Cultura e Cidadania, e achar que está tudo resolvido, seria mais um momento e espaço fragmentado. 

 

 

Pois bem, vamos falar então da disciplina de Cultura e Cidadania: é uma aula em que a metodologia privilegia a participação dos alunos, os conteúdos são estruturados anualmente, envolvendo questões contemporâneas transversais aos conteúdos curriculares, como meio ambiente, sociedade, tecnologia, consumo e cultura. A preocupação nessa aula não é aquisição de conteúdo, mas sobretudo o desenvolvimento de habilidades e competências especialmente sociais, atitudinais, e até mesmo emocionais; o que vai ao encontro com as 10 competências gerais da BNCC (Base Comum Curricular). 

 

Sobre o conceito de CIDADANIA, sabemos que há inúmeras abordagens e definições, entretanto para nós o que importa é promover seu exercício, refletindo sobre direitos e deveres individuais e coletivos, sem, contudo, nos preocuparmos com a conceituação. E sobre CULTURA? Também não nos preocupamos com essa conceituação, mas entendemos que é papel inerente à escola ampliar o universo cultural dos educandos. O sujeito esteticamente sensível é mais humano e ativo. O sujeito que conhece vários ritmos, danças, poesias, traços e cenas teatrais, é mais criativo, pois tem diferentes referências como ponto de partida. Ter contato com diversas expressões e linguagens culturais transformam o aluno passivo em sujeito autônomo e protagonista da sua história, pois ele tem a possibilidade de escolher o que gosta e o que não gosta. Ele não só recebe e reproduz, ele se transforma em ser pensante, pois fazer escolhas requer acender o pensamento. É isso que a escola precisa, é isso que a ciência precisa, de seres pensantes. 

 

 

Ora, estamos em plena pandemia, vivendo uma grande crise sanitária, social, econômica, política... como não valorizar o papel da ciência? Então, oferecer uma aula semanal que traz para o centro do fazer pedagógico os temas transversais, os quais transitam entre os conteúdos, os quais estimulam a criticidade e a construção do pensamento complexo, é no mínimo corajoso e desafiador. 

 

“(...) a transdisciplinaridade só representa uma solução quando se liga a uma reforma do pensamento. Faz-se necessário substituir o pensamento que está separado por outro que está ligado.”

                                                      (MORIN, 1999, p. 13)

 

 

Portanto, estamos caminhando para o fim desse texto, e sobre a “reforma do pensamento” podemos dizer com alegria que temos diversos educadores, pesquisadores, estudiosos, que nos inspiram e nos encorajam, pois nosso compromisso é legitimo. Não podemos ser negligentes e nos contentarmos com a formação rasa e superficial do ser humano. Iremos além, iremos nos reinventar, estudar, ler, ousar, atuar sem culpa, sem medo, pois pulsa em nós o entendimento e, simultaneamente a inquietação, sobre o papel profundo e complexo da educação.